João Borges de Assunção jba@ucp.pt 20 de Fevereiro de 2020 às 20:29

A ditadura da moda

A introdução de normas pela via maioritária constitui-se assim na prática, nalgumas circunstâncias, numa forma de ditadura da maioria. Em que a minoria, que não partilha de um ponto de vista sobre um tema, é obrigada a adotá-lo por razões de moda da maioria.

Anossa sociedade é complexa e difícil de compreender. E quando ela é pluralista, convivem mundividências diferentes que se respeitam e dialogam. Nalguns casos é preciso tomar uma decisão e a nossa sociedade tolera a regra da maioria, no pressuposto do respeito pelas minorias.

A maioria dos leitores concorda provavelmente com as frases do primeiro parágrafo. Mas elas escondem muita ambiguidade e controvérsia. Por exemplo: quem tem direito a participar na decisão, o que influencia de forma determinante a regra da maioria; ou se se pode decidir tudo incluindo expropriar direitos e bens da minoria.

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Há ainda um terceiro nível do foro individual sobre se uma decisão maioritária obriga os minoritários a mudar de posição. Ou se os inibe de continuar a defender a sua posição ainda que agora legalmente vencida.

Este processo social complexo é exacerbado pelo consumo, e pela partilha de pontos de vista no espaço público e nas redes sociais.

Nas sociedades totalitárias, por oposição às pluralistas, há uma imposição de pontos de vista às minorias que nalguns casos incluem a regulação da moda. Como é o caso da Coreia do Norte, que regula os cortes de cabelo admissíveis, por exemplo. No passado medieval, a segregação social fazia-se também pelas cores do vestuário que cada um estava autorizado a usar, em função da sua condição social.

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A moda e os padrões de consumo impõem também uma pressão uniformizadora sobre os indivíduos. E trata mal, por vezes com a exclusão, as pessoas que não se conformam com os padrões de moda conjunturalmente maioritários. O consumismo e as novas tecnologias são também uma expressão dessa pressão social em que se julgam as pessoas pelo grau de modernidade dos “devices” ou “apps” que utilizam.

A ditadura da moda quando restrita ao vestuário e ao calçado não é muito grave, embora possa ser penalizadora para os mais jovens e impressionáveis. Até porque a moda no vestuário convive com os estilos clássicos. Que ficam sempre bem. E inclui a própria ideia da novidade pela novidade. Ou seja, de que as cores e a moda serão diferentes em períodos adjacentes. Na moda há evolução, mas não há progresso.

A moda também surge nos ambientes empresariais. Em que de repente todas as empresas usam as mesmas expressões como símbolos de modernidade. E as empresas que não participam sofrem o risco de exclusão ou ostracismo, mesmo por parte dos poderes públicos. Os clientes são muitas vezes mais generosos e também mais imunes ao poder das modas dos jargões da gestão. Ligam a coisas mais básicas como a qualidade, a variedade, a satisfação e o preço.

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A ditadura da moda nas empresas tem por isso o risco das posições dos regimes totalitários. Quem não adere à moda pode ser excluído. Por exemplo, pelas agências de acreditação e certificação, que na sua adesão às modas podem criar custos elevados e desnecessários para a empresa e a sociedade.

A introdução de normas pela via maioritária constitui-se assim na prática, nalgumas circunstâncias, numa forma de ditadura da maioria. Em que a minoria, que não partilha de um ponto de vista sobre um tema, é obrigada a adotá-lo por razões de moda da maioria.

Nestes casos, a ditadura da moda deixa de ser apenas social e passa a ser normativa. O que na minha perspetiva torna insatisfatória a regra da maioria simples para tomar uma decisão, já que a adoção da nova norma obrigará os minoritários a adotar um padrão de comportamento que rejeitam na sua forma de ver o mundo.

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O nosso Governo e o nosso Parlamento não dedicaram ao tema da eutanásia o cuidado intelectual, cultural e civilizacional que o mesmo merecia.

A moda é um processo social essencialmente inócuo se circunscrito à esfera social. Quer falemos de vestuário, música ou cinema. Mas corre o risco de se transformar num instrumento totalitário quando se converte em normas de caráter impositivo ou condição de participação. Quer isso ocorra nas leis aprovadas no Parlamento, quer nas regras de um concurso de financiamento, quer ainda nas especificações de uma entidade certificadora ou regulatória.

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Há muitos assuntos em que a regra da moda ou da maioria não é critério suficiente para uma boa governação ou uma boa tomada de decisão. Vivemos num mundo que não parece compreender isso e em que se está a perder o respeito pelas minorias.

P.S: Escrevo esta crónica no dia em que o nosso Parlamento irá aprovar na generalidade, tudo indica, vários diplomas sobre a “eutanásia”. É um assunto muito delicado. E o nosso Governo e o nosso Parlamento não dedicaram ao tema o cuidado intelectual, cultural e civilizacional que o mesmo merecia. Para mim, um dia muito triste.

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